sexta-feira, meia-noite, orla de Santos
a adolescência usa pouca roupa e muita droga
ocupa todos os bancos da praia
e diz palavras como você simplesmente ou tem que saber que é maluco
eu passo...
distingo com clareza os que querem fumo, os que querem pedra, os que querem pau
cidade de Santos, meia-noite...
respiro o ar antigo de minha mãe
Iemanjá aqui se veste de cinza, mesmo no sol a pino
sinto saudades do seu vestido azul do mar do sul
aqui a degradação é viva como é cheia de vida uma ferida que purula a guerra imunológica
encaro a cidade com meus olhos que não mais se curaram
e ela já não é a
mulher velha líbano-brasileira gorda excessivamente pintada com o cabelo enrolado em um grande birote que aponta para o alto coberta de ouro com unhas imensas
travestiu-se de criança prodígio
olhamo-nos, longamente...
era uma menina vívida de pequenos gestos obscenos como os das crianças precoces que fingimos não ver
tudo nela era sensual & infantil
mas descobri em seu olhar a velhice da gorda e disse-lhe
criança, quem te pintou como uma puta?
seu rosto transfigurou-se
transformou-se em um ninho de serpentes, cólera & arsênico
eu passo...
um menino paulistano com sua fala de "r" demarcado passa com sua turma
amanhã vai ter álcool e Ana... quero ver o karma, disse-me sem saber que me dizia
eu lhe escuto
estalo os dedos da maneira correta
circundo as mãos em torno dos punhos da maneira correta
inclino levemente a cabeça da maneira correta
e corretamente pronuncio em voz clara: eu aceito seus votos
está feito segundo as regras da arte... ele verá o karma
mistério, mistério, mistério
jamais saberemos quando e menos se sabe o porquê encontraremos de passagem
um buda
um anjo
um brujo
um demônio
como é mistério a motivação da testemunha de impor o seu feitiço de dar fé
eu passo...
vejo o descanso do trabalhador sobre o banco da praça entretido com o fluir de meninas de todas as classes
quando uma especialmente lhe apetece ele roça os muitos pelos que lhe cobrem subindo a mão desde a beira do púbis até o bico do peito e termina o gesto beliscando o próprio mamilo
eu abençôo o Eros que o anima
eu passo...
a noite mais espessa que a baba dos famintos passará carregando passos, putas, trabalhadores, adolescentes... e Eros dormirá preguiçosamente
sim
também a noite passará
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